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A vida a bordo de um atuneiro
Pisámos terra. Depois de 7 dias em mar, era suposto que a náusea constante se fosse embora. Algo não está bem. Ainda sinto em mim algumas réplicas das ondas. E porque estarão os pescadores tão impacientes? Sou sempre dos últimos a receber as novidades da dinâmica do barco. Vou perguntar diretamente ao Mestre. Confirma-se! Após a descarga, o barco sairá novamente. É que se ao menos o tempo no mar navegasse assim como em terra…
Vamos iscar e com alguma sorte encher todos os depósitos de isco vivo instalados no barco, recompensa dada aos atuns que se aproximam da “gente”. Segundo o relato de alguns pescadores, o que mais cansa na pesca do atum, não é a própria pesca em si, mas a obtenção de isco vivo e de qualidade, ao mesmo tempo que se fazem cálculos de aritmética para ajustar um sono breve e tranquilizante com a próxima hora de vigia ou «trepo», que atrapalha a dose diária recomendada.
Existe, no Arquipélago dos Açores, um vasto oceano estendido, repleto de espécies marinhas, algumas delas sustentavelmente capturadas através de artes de pesca tradicionais e outras que são protegidas de forma integral, nomeadamente os cetáceos que ocorrem nos mares da região.
No entanto, tal cenário nem sempre foi assim descrito. No século passado, praticava-se a arriscada caça à baleia, com o intuito de lhe retirar o óleo do tecido adiposo, que seria útil para a iluminação, bem como a morte resultante por by-catch do golfinho, em que uma vez avistados, realizava-se o seu cerco com redes de arrasto, com o objetivo de apanhar o atum que se sabia deslocar-se por baixo na coluna de água. Também a carne moída do golfinho serviu, durante muito tempo, de engodo nas embarcações de pesca que necessitavam de isco vivo. Aqui, claramente não se tratava de um problema de by-catch mas antes de uma pesca dirigida que afetaria, consequentemente, um grande número de golfinhos.
De forma a que industria atuneira não fosse penalizada, era imprescindível garantir o estatuto “Dolphin Safe”, para os seus produtos e derivados, tendo em 1998, o governo regional, instituído por portaria, o POPA, assegurando assim, através de observadores embarcados, que as capturas de atum não provocassem mortalidade intencional de cetáceos, através de uma arte de pesca dirigida e selecionada como o salto e vara, sendo que as capturas efetuadas destinavam-se à indústria conserveira açoriana ( na pesca de atum bonito ) e/ou à comercialização em fresco ( na pesca de atum patudo ).
A frota alvo do POPA cobre no total 31 embarcações superiores a 20m, inclusive aquelas registadas na Madeira e que venham pescar para a Zona Económica Exclusiva dos Açores, que todos os anos, a partir do mês de Abril, quando a temperatura da água começa a subir, se lançam ao mar de forma impaciente e frenética, tentando acelerar ao máximo, através de uma boa pesca e um sustento generoso, a demora de uma época que se avizinha sempre longa.
Esta safra calhou-me a mim o papel de observador. Faço por confiar no meu olhar, enquanto ao meu lado, um dos vigias alerta o mestre de um movimento denunciado pelas estrias das ondas. Cubro a área à minha frente, espreitando pelos binóculos e não sou capaz de decifrar o que paira na água. Apenas confundo as ondas, essas mesmas, que ressaltam umas nas outras. Vinte e cinco minutos depois, avisto um bando de cagarros energéticos, que se lançam à água em modo ave de rapina, disputando com o atum, que em direção contrária, encurrala a comedoria – chícharo e cavala – tendo denunciado a uma distância de 7 milhas náuticas, aos esgotados vigias, um bom cardume de atum.
“COMEU” são as palavras gritadas no alto, lançadas por toda a traineira, fazendo ricochete na abalada fibra do barco e contagiando todos os pescadores com uma ligeira dose de adrenalina. Todo o pescado vai para o porão, onde a temperatura ideal permite então conservar o peixe, evitando a perda de frescura e valor aquando da sua descarga em lota.
De facto, o cardume avistado e agora residente no porão era bem grande, como havia mencionado o “Lino”, vigia que conta com 41 anos de experiência.
Toda uma tripulação depende, inteiramente, dos seus olhos claros, consequência do desgaste da luz solar. Após tantos anos, e de 14 horas por dia a fixar um horizonte que se revela torto, ainda olham com um vigor louvável por entre a cortina incerta do oceano, sempre esperançosos de que o padrão da água se desmonte e revele a próxima colheita.
Apesar do dia estar ganho, não significa que se possa parar o barco e descansar. Nada disso. Enquanto houver luz ainda há esperança, pelo que todos voltam para as suas posições: o mestre ao comando, os vigias às suas cadeiras confortáveis que convidam a um sono breve e disfarçado com os binóculos a servir de encosto e o cozinheiro para volta do rufar dos tachos e panelas que com um ritmo tosco embalam a inspiração do mesmo para a última refeição do dia. Os restantes voltam-se para um novo cochilo, tentando encaixar-se num novo cálculo de sono. O verdadeiro jet lag está aqui, camuflado pelo cansaço que não permite alcançar numa sesta a fase REM e consequentemente esquecer-se de sonhar. Pergunto-me então onde será que a sua imaginação os leva, quando a insónia os atinge.





































































